Um farol de esperança para o empreendedorismo tecnológico preto

Logo branco do InovaAfro em um fundo preto com foto de seis empreendedores pretos em preto e branco
Leonardo Gross de terno, braços cruzados e sorrindo
Artigo de Leonardo Gross
Gross é mercadólogo, empreendedor serial do setor de saúde, fundador da DigitalHealth.Works, líder de soluções digitais para América Latina na GE Healthcare e mentor nas iniciativas de empreendedorismo da Agência de Inovação da Unicamp.

 

Quando eu comecei no início de 2017 a fazer pitch em busca de funding para a minha primeira startup de saúde e bem-estar, eu não tinha conhecimento das estatísticas, apenas uma ideia distante de que empreendedoras e empreendedores pretos eram subfinanciados. Nessas tentativas, tomei inúmeros cafés com Venture Capitals (VCs), investidores-anjos, grandes grupos que poderiam investir ou, pelo menos, comprar a minha solução, mas isso não resultou em nada. 

Todos achavam a solução incrível, de tão incrível que não se podia acreditar que funcionaria. Mesmo depois da empresa ter mais de 3 mil usuários pagantes em países como Estados Unidos, Suíça, Holanda, Tailândia e Emirados Árabes ou depois de eu ter fundado uma spin-off, que por mais de 7 anos gerou mais de 10 milhões de reais em receita bruta acumulada – contrariando qualquer estatística do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a incredulidade dessas pessoas me afastava das oportunidades de decolar no Brasil. 

Lembro de um caso que muito me intrigou de uma grande corporação que após dizer: “Você tem um nirvana nas mãos. Se eu tivesse a sua solução, eu não precisaria de três startups aqui dentro.”, mas eu nunca mais tive qualquer retorno, mesmo depois de múltiplas tentativas frustradas de retomar aquela conversa que me parecia tão promissora. Às vezes, eu me sentia dispensado e me perguntava: se eu fosse um homem branco, teria tido a oportunidade de participar daquela reunião ou minha ideia seria recebida de forma diferente em vez de inacreditável?

A partir daí, comecei a pesquisar as estatísticas de financiamento para empreendedoras e empreendedores pretos e buscar pessoas pretas como referências para entender se o meu caso era isolado ou apenas sintomático de um problema maior, as desvantagens históricas do racismo.  E essa trajetória e reflexão que resolvi compartilhar neste artigo.

Construindo uma rede de relacionamento

Em busca das estatísticas, deparei com o número de que os afrodescendentes têm crédito três vezes mais negado por instituições financeiras nos Estados Unidos, de acordo com a Small Business Administration (SBA). E um estudo realizado pela RateMyInvestor com 9.874 fundadores de empresas americanas, apontou que apenas 1% das startups que recebem capital de risco são fundadas por pessoas pretas.

Evandro está com uma camiseta lisa preta em pé e de braços cruzados. Ao lado dele há um robozinho em pé.

Evandro Barros, CEO da DataH

Entre as principais dificuldades para se conseguir financiamento de risco, temos a ausência de uma rede de contatos tradicionalmente inseridos no mercado (networking) que facilita o relacionamento com os investidores, como destaca Evandro Barros, CEO da DataH: “O mais difícil é provar sua capacidade e mostrar os fundamentos do seus trabalhos enquanto constrói uma rede de pessoas que acredita no que você faz. Isso nos ajudou em termos de funding.” afirma Barros, que é, felizmente, uma exceção no escalonamento da sua startup. Ele, que foi criado pelo padrasto pedreiro e pela mãe faxineira, hoje mora com sua família no Canadá, onde sua empresa de inteligência artificial passa por dois hubs de aceleração. “Não é fácil, mas também devemos liberar nossas mentes das questões regionais e ver o mundo de forma mais ampla, soluções que não funcionam no Brasil, podem ser ótimas na Ásia ou na África.”, explica o empreendedor sobre a visão de mercado. 

Tornar-se um empreendedor de sucesso na área de tecnologia, como Evandro Barros, é difícil para todos. Mas é especialmente desafiador para os empreendedores pretos. Simplesmente não existe uma precedência estabelecida para nos basearmos tanto como inspiração quanto apoio nessa jornada. Estamos construindo essa base agora, como a primeira geração de empreendedores pretos brasileiros no setor de tecnologia. A maioria dos empreendedores pretos de Tech, provavelmente, não conhece nenhum outro fundador preto de sucesso, não tem conexões com VCs e a maioria provavelmente encontrará um processo muito árduo para buscar recursos e mentorias para ajudar seu negócio a escalar. 

Tudo, desde o acesso ao capital até o networking e a localização de mentores, pode representar obstáculos desproporcionais aos empreendedores pretos. Mas como mudar esse cenário? Como garantir que surjam cada vez mais empreendedores pretos de sucesso em tecnologia? Talvez seja vital e premente que primeiro reconheçamos os desafios que implicam na nossa jornada empreendedora para que possamos assumir um papel mais protagonista na nova Era Digital.

Hackeando o sistema para se ter acessos

No recorte da foto, Carlos Humberto Silva está com tranças, camisa social e olhando para a acâmera

Carlos Humberto da Silva, CEO e fundador da Diaspora.Black

“O desafio de empreender em tecnologias sendo negro, eu acho que são três grandes situações: a primeira situação é que empreender em tecnologia exige investimento e nem sempre a gente tem os mesmos acessos, os mesmos privilégios para acessar os investimentos. As ferramentas geralmente de gestão ágil e para impulsionar o crescimento de um negócio de tecnologia nem sempre são tão acessíveis, por conta de serem muitas vezes, instrumentos que são replicados em espaços privilegiados que nem sempre nós negros acessamos. E outro grande pilar são as metodologias, muito se parecem com as duas primeiras situações para gestão ágil e das diferentes etapas de crescimento de um negócio de tecnologia, seja na fase da ideação, seja na fase da validação, do MVP, na fase da tração, exigem conhecimentos de metodologias que nem sempre nós acessamos. Acessar investimento, metodologias e ferramentas são grandes pilares para o conhecimento de um negócio sendo empreendedor negro e é o grande desafio para muitos de nós.” recomenda Carlos Humberto da Silva, CEO e fundador da Diaspora.Black, primeira startup de hospedagem compartilhada dedicada à população preta.

Silva tem razão. São muitos os acessos que não temos. Precisamos “hackear” o sistema que nos fecha tantas portas. Ainda assim, reconheço que tive oportunidades que minimizaram o racismo estrutural escancarado na minha jornada, mas ainda presente. Sempre fui a única pessoa preta na sala. Eu vi meu status como algo especial, como ir a algum lugar onde todos estão vestidos de branco e você é a única pessoa vestida de escarlate. Onde todo mundo está olhando para mim e se perguntando: Quem é ele? Como ele entrou nesta sala? Comentavam pelos olhos, entre si, veladamente suspicazes. Nesse ambiente solitário, eu tive muitos privilégios – mesmo sendo criado num sistema quase espartano em que o iogurte acabava sempre na primeira semana do mês e não tinha reposição (risos). 

Tive a oportunidade de ser mentorado por uma mãe culta, letrada, executiva de uma das maiores empresas de tecnologia do mundo, pude estudar em uma escola bem estruturada e renomada, estudei inglês e espanhol, fiz MBA nos Estados Unidos, morei na Europa, tive minha primeira empresa antes dos trinta. Sou um dos poucos brasileiros pretos neste nível, tive muitos acessos, e isso é um problema: No eixo Rio-São Paulo, do evento do investidor, demo days, hackathons ao painel de discussão com apostas altas, ainda há uma sensação tangível de que estamos enormemente sub-representados no empreendedorismo tecnológico, mesmo sendo maioria na população brasileira (55.8% dos brasileiros se declararam pretas ou pardas no levantamento do IBGE de 2018).

“A falta de inclusão gera tecnologias nocivas”

Na foto, Ana Carolina Cândido está sorrindo e usando tranças longas e soltas com roupas de frio, incluindo um cachecol. Ao fundo, há árvores e parte do céu.

Ana Carolina Cândido, COO da startup InsulinAPP e analista de inovação da Eretz.Bio.

“Precisamos de mais negros como protagonistas do desenvolvimento de tecnologias, seja como empreendedor, como profissionais de tecnologia ou como gestores. A falta de estratégias genuínas de diversidade racial e inclusão gera tecnologias nocivas, como são os casos de algoritmos enviesados e racistas de reconhecimento facial. Apenas equipes diversas, que representam diferentes parcelas da população, serão capazes de entender e reconhecer os problemas reais de grande parte da sociedade.” conclui Ana Carolina Cândido, COO da startup InsulinAPP e analista de inovação da Eretz.Bio.

A boa notícia é que mais investidores estão começando a reconhecer que isso é um problema e parece haver alguns bem-intencionados que estão começando a investir recursos para resolver essa questão. A gigante da tecnologia Google, por exemplo, decidiu que vai colocar dinheiro apenas em startups de empreendedores pretos e pardos no Brasil através da iniciativa inédita Black Founders Fund. A mudança ocorre em meio a um movimento nacional em direção a políticas mais equitativas racialmente dentro do setor privado.Ainda é um movimento em ascensão, mas eu incentivo mais empreendedores pretos que aspiram empreender a aproveitarem as oportunidades que estão surgindo. Isso pode significar desistir de empregos confortáveis ​​em que se sintam seguros, mas se você quer empreender, como diz o trecho da música “Entrepreneur” recém lançada por Pharrell Williams e Jay-Z: “Se você quer voar e dar o salto, você tem que arriscar tudo (arriscar tudo!). Ou são muitas coisas que você nunca verá”. 

Empreender, especialmente em empresas de base tecnológica, é a arte de correr riscos. O empreendedor de sucesso deve ter coragem para correr riscos. E para minimizar o risco, é preciso validar se aquilo que se pretende oferecer tem valor e resolve um problema real. “O empreendedor preto precisa focar em compreender a tecnologia para resolver problemas relevantes para população, ainda que estejam além do que é possível enxergar na sua comunidade, e em construir laços para acessar espaços onde a sua ideia de solução seja ouvida de forma honesta.”, atesta Igor Souza, sócio da Improve.Business, apoiador e mentor da BlackRocks Startups que fez parceria com o banco BTG Pactual para acelerar negócios liderados por, pelo menos, uma pessoa preta. 

Representação preta na tecnologia

Se você é preto, empreendedor iniciante ou aspirante que, como tantos outros, não sabe por onde começar, penso que conhecer essas histórias de empreendedores pretos brasileiros de sucesso o colocarão muito à frente dos outros e, o mais importante, elas irão motivá-lo a dar impulso ao próximo passo e a acreditar que é possível e necessário ocupar esse espaço.

Ivan Moraes está com uma camisa social sorrindo e olhando para a câmera

Ivan Moraes, proprietário da Natipe Consultores

Mas também ciente dessas e outras estatísticas e experiências vividas, porque não devemos ignorar que o racismo existe e é latente. O Brasil foi o último dos países das Américas a abolir a escravidão e sem incluir essas pessoas à população com condições de crescimento, como as terras que foram oferecidas em seguida para outros povos imigrantes no país. O impacto disso na construção da nossa sociedade, os fatos históricos que construíram essas desigualdades e o preconceito racial é a herança que, infelizmente, permeará nossos caminhos ainda por algumas décadas. “Quando se é preto tudo se multiplica no mínimo por três, ou seja, se um camarada preto vai empreender, vai ter que estudar o segmento três vezes mais, fazer os cálculos três vezes mais, se preparar para um pitch três vezes mais e por aí vai.” desabafa Ivan Moraes, proprietário da Natipe Consultores há mais de 15 anos. 

Assim como Moraes, para mim, ser um empreendedor preto no Brasil também significa, na maioria dos casos, ter que trabalhar duas vezes mais para estar no mesmo espaço e ter as mesmas oportunidades que meus colegas brancos. Sinto que tenho de provar o meu valor repetidas vezes, mas isso não me freia, pelo contrário, me dá cada vez mais ganas em seguir para o alto e avante. A vida dos negros importa em todas as facetas da vida, seja quando questionada pela polícia, em uma entrevista de emprego ou em busca de investimento para sua startup.

Como empreendedor preto, estou ciente de que os outros me veem como um modelo, a própria representação que eu procurava e que sei que é importante para nos espelharmos. Portanto, é parte do meu dever garantir que as portas possam ser abertas para outras pessoas que se parecem comigo e fortalecer essa rede de relacionamento que estamos construindo e nos inserindo.

Em comemoração ao Mês da História Negra e, coincidentemente, também a do Empreendedorismo, escrevo esse artigo com para celebrar o empenho, a dedicação, as realizações e as contribuições de todos os empreendedores pretos pioneiros e que quebram recordes todos os dias.

 

Glossário da Inovação:

Pitch: Apresentação direta e curta, com o objetivo de vender a ideia da startup para um possível investidor.
Funding: Forma de captação de recursos financeiros para o investimento específico pré-acordado de uma empresa, uma estratégia muito utilizada atualmente em startups e negócios relacionados à tecnologia.
Venture Capital (VCs): São organizações que investem em startups e empresas de grande crescimento em troca de ações, ou mais comumente, uma participação na empresa.
Spin-off: Empresa criada a partir de uma outra, deixando parcialmente ou totalmente de fazer parte da “empresa-mãe”.
CEO: Sigla em inglês para Chief Executive Officer, que pode ser traduzido como Diretor(a) Executivo(a) em Português, trata-se do mais alto cargo dentro de uma organização.
MVP: ou produto mínimo viável, uma prática que consiste em lançar um novo produto ou serviço com o menor investimento possível, para testar o negócio antes de aportar grandes investimentos.
Demo Day: Termo em inglês que pode ser traduzido como “Dia de Demonstração”, um evento em que empreendedores de startups têm a oportunidade de apresentar seu negócio para investidores ou aceleradoras e incubadoras.
Hackathon: Maratona de programação na qual hackers se reúnem por horas, dias ou até semanas a fim de explorar dados abertos, desvendar códigos e sistemas lógicos, discutir novas ideias e desenvolver projetos de software ou mesmo de hardware.
COO: Sigla em inglês para Chief Operating Officer, que pode ser traduzido para o Português como Diretor(a) de Operações ou Executivo(a) Chefe de Operações, normalmente é a pessoa de mais confiança de um(a) CEO.